domingo, 29 de julho de 2007

Comentários ao Discurso Fúnebre de Péricles

Homenagem aos atenienses mortos na guerra do Peloponeso, nos primeiros meses de 430 AC.

A nossa constituição não imita as leis dos estados vizinhos. Em vez disso, somos um modelo para os outros. O governo favorece a maioria em vez de poucos - por isso é chamado de democracia. Se consultarmos a lei, veremos que ela garante justiça igual para todos em suas diferenças; quanto à condição social, o avanço na vida pública depende da reputação de capacidade. As questões de classe não têm permissão de interferir no mérito, tampouco a pobreza constitui um empecilho: se um homem está apto a servir ao estado, não será tolhido pela obscuridade da sua condição...

Estes não são os únicos pontos pelos quais a nossa Cidade é digna de admiração. Cultivamos o refinamento sem extravagância, e o conhecimento sem efeminação. Empregamos a riqueza mais para o uso do que para a exibição e situamos a desgraça real da pobreza não no reconhecimento do fato, mas na recusa de combatê-la.

Diferentemente de qualquer outra comunidade, nós, atenienses, consideramos aquele que não participa de seus deveres cívicos não como desprovido de ambição, mas sim como inútil. Ainda que não possamos dar origem à política, em todo caso podemos julgá-la; e em vez de considerarmos a discussão como uma pedra no caminho da ação, a consideramos como uma preliminar indispensável de qualquer ação sábia... Em resumo, afirmo que, como cidade, somos a escola de toda a Grécia...

A minha tarefa agora terminou... e pelo menos em palavras as exigências da lei foram satisfeitas. Em se tratando de uma questão de feitos, aqueles que estão sendo enterrados já receberam uma parte das homenagens. Quanto ao resto, os filhos do sexo masculino serão educados às expensas públicas até alcançarem a idade adulta. Assim, o estado oferece um prêmio valioso, a grinalda da vitória nesta corrida de bravura, para recompensar tanto os que caíram quanto os que sobreviveram. Pois quanto maiores as recompensas do mérito, melhores serão os cidadãos.
(Texto difundido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em: http://www.educacao.sp.gov.br/)

Democracia e Mérito
Comentários de Héctor Ricardo Leis

O Discurso Fúnebre de Péricles data de 431 AC. Foi pronunciado em homenagem aos atenienses mortos no primeiro ano da guerra contra Esparta. Aqui se apresentam alguns fragmentos desse discurso, de cujo original se conserva apenas o registro feito por Tucídides, na sua famosa obra “A Guerra do Peloponeso” (Livro II). O discurso de Péricles é, sem dúvida, um dos mais importantes pilares da cultura política ocidental. Trata-se de um texto de mais de 24 séculos que permanece clássico pela sublime e inigualável grandeza dos valores que inspiraram a democracia ateniense.

A Atenas de Péricles marcou um dos momentos mais extraordinários da história da civilização ocidental. Sua influência na posteridade não é inferior à da tradição hebraica que daria surgimento ao cristianismo. Foi um momento em que a harmonia entre indivíduo e sociedade brotaram espontaneamente do regime democrático. Nem sempre é esse o resultado da democracia, nem no passado, nem no presente. De fato, a democracia se conjuga no plural: não existe “a” democracia, mas “as” democracias. Para entender hoje a democracia ateniense da época de Péricles devemos lembrar que autores como Platão e Rousseau não gostavam dela. A radicalidade de suas posições levou a ambos a ficar mais perto do espírito da autoritária Esparta que da libertária Atenas.

O Discurso Fúnebre de Péricles mostra a forte singularidade de Atenas. Nela reinava a liberdade e o indivíduo obtinha reconhecimento diferenciado. De acordo com Péricles, embora a lei garantisse uma justiça igual a todos os cidadãos atenienses sem exceção, a reivindicação da excelência individual também era um ponto alto da vida da polis. Isto é, não é a maioria quem regula a vida social, mas o mérito individual. Atenas, berço da democracia, era uma meritocracia. Não era o privilégio que regulava o acesso às posições destacadas na função pública, mas o mérito. Quão longe estamos disso na atualidade! Ao invés da meritocracia, temos a mediocracia.

Para entender a idéia de democracia ateniense é necessário apagar as concepções modernas de democracia, herdeiras muito mais das críticas, do que dos elogios a Atenas. Apenas um século depois de Péricles, Aristóteles registra o fato de que na Atenas de sua época, o ideal de igualdade meritocrática se tinha transformado na tirania niveladora das maiorias. Circunstância que voltará a ser teorizada, como um problema da democracia por Tocqueville e Mill, recentemente, no século XIX. A igualdade como instrumento das maiorias se apresenta como uma reivindicação moral, sendo a rigor muito mais uma reivindicação política de profundos efeitos deletérios na vida pública. Essa reivindicação começa como demanda de justiça, mas termina justificando o rebaixamento dos outros para promover um interesse próprio de costas para o mérito. Mas sem o reconhecimento social dos méritos individuais, se atenta contra a nação como um todo. Sem a reivindicação do mérito, a liberdade e a igualdade correm o risco de se transmutar na tirania do coletivo, algoz tanto da felicidade dos indivíduos, como das potências do Estado.

A decadência da democracia ocidental contemporânea está intimamente associada ao esquecimento do conceito ateniense de democracia. Para os cidadãos de Atenas, sua liberdade era dada por natureza, mas sua igualdade por convenção. A igualdade não era um fim senão um meio. Um artifício para produzir uma autêntica hierarquização definida pelo mérito de seus cidadãos. Com exceção de Atenas, o mundo antigo (tanto no Ocidente, como no Oriente) estava estruturado através de hierarquias artificiais que poucas vezes refletiam o verdadeiro mérito das pessoas. Hierarquias congeladas em direitos nobiliários ou simplesmente oligárquicos que nunca eram colocadas à prova. A igualdade política foi a grande invenção dos atenienses para colocar à prova essas hierarquias. A igualdade jurídica dos cidadãos de Atenas permitia que seus méritos fossem a medida da hierarquia que iria organizar sua vida social e política.

A idéia de igualdade perverte-se precisamente na sua extensão do campo político para o social, porque nesse instante já não existem mais obstáculos que impeçam sua naturalização. A partir do momento em que a igualdade passa a ser exigida pela maioria também no campo social, ela vai perdendo o caráter artificial que tinha no campo político. Nesse novo contexto (no qual a igualdade passa a ser aceita como natural), todas as diferenças entre os indivíduos (inclusive aquelas claramente baseadas no mérito) se tornam fontes de inveja e de suspeita. A naturalização da igualdade introduziu no seio da sociedade moderna uma lógica perversa que ameaça as bases do reconhecimento do mérito dos indivíduos e dos diversos grupos sociais e, em última instância, seu convívio dentro do Estado.

É impossível desvincular a prática de uma concepção da igualdade ao serviço do mérito, em relação aos grandiosos resultados obtidos em todas as esferas pela pequena Cidade-Estado de Atenas. Tanto na filosofia como na literatura, na arte como na ciência, na guerra como no esporte, os atenienses deixaram uma marca que nunca poderá ser esquecida pela humanidade. Quantos são os Estados (ou mesmo os Impérios) que ostentam recorde semelhante na história mundial? O esquecimento do necessário caráter artificial e subordinado da idéia de igualdade é um fator difícil de ser revertido. Mas a pergunta pela atual decadência moral e espiritual de nossas democracias obriga a levar essa questão ao debate público, despojada dos preconceitos construídos, muito particularmente, ao longo do século XX.